sexta-feira, abril 16, 2004

COMO AINDA NÃO TEMOS AUDIO
Inauguro a secção "Textos Pedidos". O primeiro texto, dedicado à Zazie e à Di (embora ela não goste de mim...), da autoria do artista português Vasco Pulido Valente:
Bush
A conferência de imprensa de Bush, a terceira do seu mandato, a que assisti em directo, foi ao mesmo tempo extraordinária e assustadora. Em meia hora o mundo, que nós conhecemos, desapareceu. Com fervor, o Presidente explicava: a grande «missão histórica» da América era estabelecer uma democracia a sério no Iraque e, a seguir, pela influência e o exemplo do Iraque, em todo o Médio Oriente. Havia algumas dificuldades de percurso? Claro que sim. Como tinha havido com a democracia americana. Quanto à ocupação propriamente dita, não tinha uma ocupação semelhante, ou pior, levado à liberdade o Japão e a Alemanha? E essa liberdade, ou esse imortal desejo dela, que Deus pôs no coração de cada homem e, com certeza, também de cada iraquiano, não apelava ainda irresistivelmente à virtude apostólica da América? Iria agora a América trair o Omnipotente no Iraque? Ouvindo isto, qualquer pessoa (um europeu, pelo menos) começa por se rir. Mas, pouco a pouco, vem uma dúvida. Bush parece sincero, ingénuo, quase inocente. Olha para nós com olhinhos brilhantes de boneca, sem profundidade e sem malícia. Fala com uma convicção de adolescente. E, por mais que se queira, não se pode evitar a suspeita terrível: será que ele acredita naquilo? Será que não vê diferença entre o Iraque e a Alemanha e o Japão? Será que imagina realmente, na sua pequenina cabeça, um Iraque arrumadinho e rico, muito respeitador do Estado de Direito? O estereótipo do americano ignorante e simplório já passou de moda. Só que, de repente, ele está ali, na Casa Branca, com o seu ar simpático e bonzão, a preparar uma catástrofe. Um Bush cínico, um Bush hipócrita e mentiroso como Blair não meteria medo. Este Bush mete medo.
Vasco Pulido Valente, DN, 16.04.2004

ANIMAL